Reflexão da semana 02 e 03/5

O teatro como definição desde sua origem é um local e uma atividade do olhar. O termo no grego antigo para ator é “hypocrites” (υποκριτής), que está ligado diretamente ao verbo “hypokrino”(υποκρίνω), que significa “responder”, “interpretar algo”, “dar o seu parecer a respeito de algo”. Então o ator é o agente, o núcleo da ação teatral que responde a uma inquietação, é aquele que traz uma nova visão a uma pergunta dada, um estímulo, ou uma necessidade que está além dele mesmo. O ator explora materiais que dizem respeito não apenas à arte do teatro, mas também à natureza humana e ao mundo. O corpo do ator narra enquanto é auto narrado, e interpreta enquanto é auto interpretado.
Na definição de Dubatti: “o teatro é um corpo e podemos dizer também que esse corpo é de um ator (núcleo gerador) que produz acontecimento e estabelece uma ética dialógica com o espectador. O ator instaura em cena com o seu corpo ativo um outro tempo-espaço que convida o espectador a ver a partir de um outro olhar ao ponto de se atingir a estranheza do mundo dito como reconhecível”. Sendo assim, o teatro contempla em si o território, o objeto observado e o observador. No livro “O retorno de Dioníso”, do diretor grego Theodoros Terzopoulos, para além das definições técnicas de voz e corpo, o autor reforça a importância do ator no centro da ação teatral com autoconsciência, conhecimento e combatividade. E acrescenta: “o mundo mudou e o ator deve cultivar uma crítica frutífera das coisas e expressar constantemente sua agonia: que o teatro é outra coisa que não é o que pensamos até agora e que deve seguir outra direção. O artista tem a missão de redefinir o valor do homem com o seu corpo, espírito, palavras, energia e transgressão. É um apelo, um grito selvagem diante do que está sendo perdido, mas não está irrevogavelmente perdido, porque o corpo traz em si a esperança”.
Em 2004, numa entrevista do programa “Roda Viva”, Zé Celso fala da cultura como o próprio amor em si, a cultura da vida, do tesão, do corpo livre que se coloca diante da barbárie imposta pela sociedade. Ele provoca sobre a necessidade de “massacrar o próprio massacre” através do movimento amoroso da arte. Ao ser questionado sobre a sua motivação de fazer teatro, Zé Celso destaca a paixão e a crença no poder transumano da arte. O artista deseja encontrar o outro, ou deveria ser essa a motivação para o encontro nessa experiência que se estabelece no teatro. Isso é evidente nos espetáculos do Teatro Oficina: um ritual cheio de corpos dionisíacos que extrapolam a dualidade do que é sagrado ou profano, do que é aceitável ou não, sendo tudo ao mesmo tempo. Em “Sertões”, é nítido que os atores estimulam o público de forma permanente e ao mesmo tempo gozam dos estímulos retribuídos pelos espectadores. São atores brincantes que levam a sério a ideia de disponibilidade espiritual para convidar o espectador ao jogo. É nesse palco-terreiro onde a nossa criança dança livre e sem vícios do que foi ensinado socialmente. É a morte iniciática do espectador inerte para o despertar no ato de ver e também ser visto como um corpo que propõe e dialoga com o todo. Zé Celso tem esse poder de trazer espectadores companheiros, dispostos a sentar-se à mesa para comer e repartir o pão. O espetáculo então é como um corpo vivo que vai além da referência literária, perpassa pelo registro histórico e vai em busca da nossa fundação mitológica, e nos instiga com uma crítica social atual sem deixar de lado o bom humor.
Em um bate papo na Universidade de São Paulo em 2015, Dubatti ressalta que precisamos valorizar o “teatro como um lugar de produção de pensamento… e que permite nos conectar com a própria vida”. E ele vai além, quando diz que a América Latina tem uma missão de começar a falar do que se passa nos teatros locais, claro, sem perder de vista os clássicos. O que se trata é de problematizar as questões e estudar os contextos locais. É importante questionar a respeito da serventia de uma montagem de um texto clássico que não dialoga com o que se vive agora. A experiência do teatro está para além da ideia do “bom teatro” com a necessidade de cumprir com o que é esperado. Ao se negar a possibilidade do risco para apenas reforçar o que é conhecido, se insiste numa prática de um teatro morto. Um espetáculo vivo seria então um desdobramento de um acúmulo experimental que se dá na presença do espectador pela ação do ator-gerador no encantamento que se dá no encontro. Tal como o barqueiro do Hades, o Caronte, que nos convida a ir junto com ele na travessia do rio e beber da água do esquecimento para desaprender e viver uma outra verdade no mundo dos mortos.
Zé Celso em uma entrevista ao programa “Quem somos nós” fala da importância da coragem de ser, pois estamos todos amedrontados. A entrevista foi em 2014 e pouco podemos dimensionar como estamos agora em 2022 nesse estado de paralisia. Por que o artista se deixou ser encaixado num padrão, numa domesticação do rito para referendar a visão do status quo mesmo vivendo a realidade atual do nosso país? Há urgência de uma formação de massa crítica de espectadores, assim como um teatro propositor de uma transformação da realidade. O desafio é manter o teatro vivo, um teatro para o acontecimento. Sem o convívio, não há teatro, portanto, precisamos fazer com o que os teatros públicos sejam ocupados, que sejam fomento dessa massa crítica que a sociedade tanto precisa para respirar. Nós artistas precisamos mais do que nunca nos organizar para fazer essa transformação. Claro que não conseguiremos fazer isso do dia para a noite, mas é necessário urgência, planejamento, organização e união com o poder público para o teatro chegar ao povo e não somente à classe privilegiada e branca como acontece hoje e desde sempre no Brasil.