Reflexão da semana 16 e 17/5

A ARTE CONTRA A BARBÁRIE

Juliana Kleine
Rogério Machado Rosa

Brasil: 665 mil mortes pela Covid 19. Pandemia. Negacionismo. Necropolítica: Bolsonaro. Amazônia em chamas. Invasão das terras indígenas. Isolamento e distanciamento social. Desemprego. Aumento vertiginoso da pobreza. Inflação disparada. Feminicídio. Racismo estrutural. Xenofobia. Dissonância cognitiva. Fascismo no poder. Cultura amordaçada. Milicianos no poder. Avanço do fundamentalismo. Política da inimizade. Conservadorismo e extremismo político. Banalização da violência. Vidas indignas de luto. Escola sem partido. Cultura do ódio. Fake News. Instabilidade social. Violações de direitos. Educação sucateada. Obscurantismo. Vontade de ditadura. Fragilização dos laços sociais. Crise ética intencional. Desamparo institucional. Saúde mental social em declínio. Truculência em alta. Política do armamento. Aniquilamento da alteridade. Sofrimento ético-político. Democracia ameaçada, adoecida. Saturação de sentido existencial. Estado suicidário. Tempo presente brasileiro: espírito de peso, desamparo da Pólis, desumanização.

Quase 40 anos após a redemocratização do Brasil, cujo povo testemunhou décadas de uma ditadura sangrenta, truculenta, míope, obsessiva e destrutiva; hoje vivemos um cenário nacional que em muito se assemelha com aquele período nefasto. A partir de um pensamento interdisciplinar entre Filosofia da Diferença, Literatura Teatral, História, Psicologia… apresentamos aqui uma reflexão sobre o lugar do ator, e do teatro, na construção de uma ética hospitaleira, de resistências e de recriação de sentidos existenciais em um tempo marcado pela barbárie, pela banalização do mal.
Para tanto, de saída, perguntamos: o que pode a arte em tempos de produção deliberada da barbárie? A arte poderia estar descolada do espírito da sua época? Pode o artista ser indiferente às intempéries do seu tempo? Ante a uma realidade embrutecida pela política de morte, pode o artista fomentar a potência de vida por meio da sua expressão artística?

No livro “Crítica e Clínica”, Deleuze (1997) afirma que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu” (p.13). Pois bem, aqui estamos… tentando exercitar a renúncia ao poder de dizer “Eu”, gesto em desuso no contemporâneo, para fazer falar uma terceira pessoa por meio de nós, isto é, um povo. Mas o que pode esse povo? Qual é o seu grito? Do que tem sede? Do que tem fome? Parece-nos que o povo quer de volta o sentido de viver! Ele quer a feliz(cidade)! E a literatura que pretende representar e dar vazão ao desejo da multidão só o fará por meio da fabulação, pois fabulando ela inspira e inventa outras realidades, funciona como “contrarrealismo” (BUTLER, 2021). Nesses termos, diz Deleuze, a literatura torna-se “uma saúde”, é potência criativa, é invenção de novas possibilidades de viver. Quer libertar a vida lá onde ela é prisioneira. E o escritor? Tal qual um médico, um psicólogo ou um esteta ele faz um diagnóstico dos sintomas da civilização e, fabulando, inventa um povo que virá. O escritor com sua literatura promove (e provoca) estesias para um povo anestesiado. A literatura é a arte de fabular mundos outros. E o escritor torna-se outro, recria a si mesmo, ao fabular outros mundos. Ele é um artesão de si e do mundo. E tais proposições insuflam de sentido a escrita que ora aqui urdimos.

Aqui lembramos que um povo não se anestesia sozinho, porque quer, porque tomou uma decisão consciente. Identificamos que a sociedade está organizada de maneira tal a promover uma luta pelo poder, em que poucos o detém, e outros sucumbem ao lutar por ele, ou tentar sobreviver servindo referido poder. A existência do estado de direito pressupõe que é necessário um poder acima da criatura humana para ordenar e instituir a vida em sociedade. Trocamos nossa liberdade pela segurança que o estado supostamente nos oferece? Parece-nos que o artista interroga essa noção hierárquica de liberdade que nos foi imposta buscando com isso restituir o dano produzido por tal imposição, e, por intermédio de sua arte, busca instaurar novos sentidos e consciências na e sobre a realidade.

Tal como o escritor e sua arte de perceber realidades furtivas e imaginar/inventar diferentes realidades (quanta ousadia!), ante à saturação de sentido do povo assolado pela tirania dos déspotas e dos escombros de um mundo em guerra (esse não seria o jogo primário que todos jogamos?), o que pode a arte? A arte nos parece ser sempre um convite (ou uma provocação) a estranharmos o mundo e a nós mesmos. Ela consiste em um poderoso afeto que, segundo (TARKOVSKI, 2010) pode “explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Pode explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão” (p. 40).
E o que pode a arte do ator nesse mundo aí? Serve para entreter? replicar realidades? confortar? confrontar? provocar? alienar? sensibilizar? fazer viver? dilatar o real? Ou a arte do ator se pretende neutra, anestesiada?

Compartilhamos da percepção de que, utilitarismo à parte, a arte do ator só tem sentido quando engajada do ponto de vista ético, estético e político com a produção de um mundo e de uma humanidade melhores. E não, isso não significa que o ator pretenda, arrogantemente, ser um “melhorador do mundo” (NIETZSCHE, 1996). O engajamento do ator implicaria em uma tomada de posição, e não na tomada de poder. Essa tomada de posição deve ser, necessariamente, ética! Nessa direção, o ator pode ser compreendido como um produtor de sentidos, um criador de condições para que novos sentidos de vida e de viver sejam inseridos no mundo e nas vidas das pessoas. O sentido ético que sustenta a arte do ator estaria ancorado em um princípio vitalista, isto é, na “Vontade de potência” (NIETZSCHE, 1996). O ator quer afirmar a vida, quer fazê-la expandir. E para isso, terá que enfrentar/combater tudo que faz morrer, tudo que faz a vida perder potência. O ator é um vitalista por excelência!

Assim como o escritor com sua literatura, como bem lembrado por Deleuze, o ator também provoca estesias para um povo anestesiado; promove saúde para o povo doente, por vezes de si mesmo. No fazer teatral, o ator cria um éthos promotor de reflexões, alegrias e de reencantamento dos sujeitos por si mesmos e pelas suas próprias existências. O teatro age contra o estado suicidário, violento e necropolítico! O ator, com sua arte, tanto diagnostica quanto ajuda a curar as doenças/sintomas do mundo, particularmente as doenças politicamente causadas. O teatro previne o suicídio! O teatro pode nos recolocar na realidade viva, nos fazendo sentir novamente o frescor do começo; mantendo o nosso olhar e a nossa percepção aguçados: infantis.

Falamos da infância como uma experiência não restrita ao corpo das crianças, mas como potência disruptiva, como flerte incessante com os limites do que somos e como “outramento transversal a toda uma existência”, como diz (LYOTARD, 1990, p. 37). O teatro parece fazer perseverar a alteridade infantil de um povo: para que não morra de maioridade. E é no corpo de ator, em relação com outros corpos, que essa infantilidade alteritária, e agora sim, afirmativa, entra no mundo como feitiço. Daí, abre clareiras na escuridão. Abre as janelas do (im)possível. Nos faz delirar de comoção imaginativa. Nos faz dizer não a tudo que diminui a nossa vontade de potência: fascismo, política da inimizade, negacionismo, fome, infanticidio…

E é, portanto, no horizonte da ampliação das nossas sensibilidades autopoiéticas e das nossas capacidades de resistir ao que nos causa dor, e ao que nos mata, que se edifica uma ética, uma política e uma estética teatral. A essa altura, parece-nos que estamos diante da defesa do argumento de que o ator, no exercício do seu ofício e no seu percurso (trans)formativo, sob pena de ser capturado pelo fascismo que o rodeia, precisa estar tenazmente engajado na construção de condições de possibilidades para a emergência de “bons encontros” (ESPINOSA, 2011). E para isso, a abertura/disponibilidade afetiva para encontrar-se com o outro é “regra de ouro”, inviolável.

Libertar o outro da condição de escravo da vontade do tirano; libertar a si mesmo da “vontade de poder” sobre o outro; […] despojar-se de si-próprio em reconhecimento ao apelo do Rosto do outro, o que torna o Eu servidor do outro” (LEVINAS): isso nos parece ser o sentido ético basilar do fazer/ser/sentir artístico do ator/sujeito/humano. Assim, partimos da convicção de que a ética do artista (ator) é lugar de produção de hospitalidade, liberdade e afirmação da alteridade. Isso porque a ética da alteridade nos convoca a dar uma resposta ao outro, a assumirmos uma responsabilidade com o seu mistério, com a sua diferença radical e com o seu bem-viver.

Por fim, intuímos que na experiência teatral, lugar dos encontros por excelência (real, virtual…), o ator pode produzir, em coautoria com o outro, um ethos instaurador de novas consciências, já que a base da noção de si é a relação com o outro (BAKHTIN, 2010). Trata-se, portanto, de pensarmos e apostarmos em uma “ética da alteridade teatral” como uma potente possibilidade de abertura e criação de topologias inventivas, as pequenas utopias, aquilo que faz com que continuemos vivos e pulsantes. Uma micropolítica de resistências e de instauração de acontecimentos entre nós, e em nós. Teatro vitalista, é teatro contra a barbárie!

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BUTLER, Judith. A força da não violência: um vínculo ético-político. 1ª Edição – São Paulo: Boitempo, 2021.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
ESPINOSA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica. 2011.
LYOTARD, Jean-François. A criança, esse fantasma do ocidente, a criança, ou seja, o desejo é energética, econômica na representativa. Trad. Tununa Mecado. Buenos Aires Fundo da Cultura econômica, 1990, p. 20-30.
NIETZSCHE, Friendrich. Vontade de Potência. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1996.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.