Reflexão da semana 09 e 10/5

Singela e despretensiosamente, essa reflexão é antes de mais nada um desejo de se deixar registrado em palavras o testemunho memorial de que houve uma experiência de encontro entre naturezas humanas. Porém, estas palavras precisam de você. Deste momento. Porque estes corpos que aqui te escrevem, estão vivos neste momento presente que estará sempre presente se você aqui também estiver, do contrário estaremos mortos, todos nós. Seremos apenas palavras em uma página, numa tela. Por isso te pedimos que ao encontrar estas palavras não se esqueça de perceber se você está se dando condições que serão imprescindíveis para que ao relembrarmos juntos o que foi vivido possamos descomplicar algumas plicas e assim, enfim, desdobrarmos em outras possibilidades. Que sejamos vivos neste instante para que algo nos aconteça.

O que foi vivido não pode ser revivido. Mas a experiência que aconteceu ficará para sempre em nós, nos modificando e reverberando de outras e inúmeras possibilidades. A todo momento somos convocados e convidados a viver algo, a nos deixar acontecer.
E já que estamos desdobrando o encontro passado a partir de um novo encontro de singularidades que somos, gostaríamos de instaurar aqui novamente e sempre vivo e sempre outro, o que de essencial que não queremos que se perca, que seja esquecido. Para que possamos todas às vezes fazer vivo em nós porque está nos acontecendo ao estarmos deixando que nos aconteça.
Desta forma, propomos um itinerário de percurso por instalações (sim, esta potente imagem que a Giovanna nos proporcionou ao nos compartilhar a própria experiência que teve na leitura da reflexão anterior), onde traremos aqui a essência do que não queremos que se perca e a tentativa de desdobramentos.

Comecemos pelas instalações que estamos propondo como fio que nos conduzirá à memória do encontro; como o Lee comentou a partir da imagem da Giovanna, a instalação trás em si a experiência de interação que faz todo sentido com o que estamos discutindo a partir do e com o teatro.

Com e a partir de Kazuo Ohno:
Como expressar em palavras uma experiência? Como resgatar o sentido das palavras sem perder a essência do que foi o encontro? O que realmente fica? Aquilo que guardamos na memória é o que nos atravessa e faz sentido. Qual é a natureza do encontro? O que nos motiva a interação entre corpos em um espaço desterritorializado para que possamos pensar a Arte? A necessidade de não esquecer, a revitalização da memória de nossos ancestrais, dos que vieram antes e mataram a Arte para que ela pudesse tornar-se viva e para que a partir dela possamos sonhar com o futuro. O sonho é o local de libertação, outro tempo/espaço de possibilidades para vislumbrarmos o futuro através do passado. De acordo com Kazuo Ohno (1906-2010), só somos hoje o que somos, graças aos nossos mortos, é necessário a morte para que haja a vida. É difícil exprimir em palavras a sua dança e assim como o sonho, nos transporta para outro lugar, outra realidade e outro tempo, nos impactando com seus movimentos e expressões, realizando assim um convite arrebatador para sentirmos algo vivo e transformador.
A palavra butô em japonês é formada por dois ideogramas: bu (dança) e to (passo), apesar de existir outras variáveis como bu como mãos e to como pés dentre outras, a sua Arte antecede à palavra e está no território do não dito, o qual sugere um corpo repleto de presença, vivo.

“Não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava, e quando nos abria as Escrituras?” Lc 24:32

Com e a partir de Hércules, num momento em que esteve tão vivo que transcrevemos aqui sua fala para que arda em nós e vivamos sempre que aqui estivermos:

“O que é essência no teatro? Não é o formato ou se está montando um texto clássico ou contemporâneo. Quem presentifica uma obra? Um texto escrito há 100, 200, 500 anos, é ele que se presentifica? Nunca será. Um texto escrito há 10 minutos? Nunca será. Ele só terá corpo, carne, presença e será inaugurado, instaurado, a partir de alguém. E este alguém é o essencial que o Dubatti está falando que em qualquer teatro, ele existe.
O que é o teatro? Poder dar ao outro o lugar de onde se vê e se fala, um lugar de onde se vai para ver. Então quem está morto é o sujeito que opera o fenômeno teatro. Quem está morto é aquele que não instaura, não instiga. Porque não entendeu quais condições são necessárias para ele existir, quanto mais um personagem que é um outro ele, um outro ser vivente também. Um personagem não é um humano de figurino, um personagem é um ser que existe. Por isso que ele precisa se diluir, se dissolver, se confundir, se complementar, se contrariar e ser controverso com esse outro que é esse personagem.
Quando começamos a fazer distinções, às vezes vem à frente um gosto pelo formato, ou uma certa observação sobre um texto clássico. Não é esse o ponto. O ponto é: como que em mim, não somente por montar um texto, como que em todos os dias de apresentação do espetáculo, a todo momento que eu falo aquela fala, ela é inaugural? Se não existir no meu corpo uma real integração sensível a partir de condições que me dou para reaver o fenômeno?
Em relação ao formato: Não é a parede, não são as estruturas que trazem a espiritualidade de um povo, de uma comunidade, a fé dele, não são os tijolos. Teatro é o lugar de onde se vai pra ver. E se a essência do teatro é o encontro entre humanos, então o teatro nunca será um endereço de uma rua tal. O teatro é: Estou indo encontrar comigo mesmo através de um outro ser e sujeito que independente do formato que ele se propor, ele tá tão vivo, que aquele texto se passa a viver por ele. A dramaturgia só ganha vida quando alguém a é. Não a diz. Passa a ser de quem está emanando aquilo.
Por isso, qual a sua percepção? Qual a sua presença? Quais são as condições?”

Com e a partir de Lee:
“O estranhamento de um eu e de um outro só ocorre quando reconheço este outro como outro, se não identifico isso, eu não estranho e ignoro que ele é um outro, simplesmente o torno reconhecível ou igual a mim, aí eu anulo o outro, imponho ao outro o que acho que ele é, como uma espécie de dominação do outro, não há possibilidades de ser surpreendido pelo outro. Isso é importante, para pensarmos o teatro, as questões humanas, o quanto estamos abordando conteúdos, personagens, dramaturgias de uma maneira que tornamos aquilo como um desdobramento nosso e não como um corpo estranho, partir desse estranhamento para se disponibilizar para a experiência, inventar a partir do encontro.”

Ir ao encontro de si mesmo através do outro, possibilitando expandir-se por meio do outro para ampliar sua subjetividade ao se colocar no lugar do outro e enxergar com seus olhos, entrar em outras dimensões para se perder e se encontrar de formas variadas que não a de costume, se ampliar ao estar disponível para o desconhecido se torna uma reflexão importante para o artista ao criar representações do mundo, resgatando a poesia e principalmente a capacidade de sonhar em épocas tão difíceis e caóticas.

Com e a partir de Dubatti:
“Chamamos convívio a experiência que se produz em reunião de duas ou mais pessoas de corpo presente, em presença física, na mesma territorialidade, em proximidade, em uma escala humana.”

De acordo com Dubatti o convívio pressupõe a presença de duas ou mais pessoas de corpo presente em uma experiência em comum, e o que faz desta experiência ser um acontecimento vivo quando pensamos na arte teatral?

O Teatro pressupõe o convívio, o lugar do encontro, lugar de experiência para que algo aconteça, mas quais são as condições criadas para que esteja vivo? Para nos fazer sonhar, para fazer sentido, para nos re-conectarmos com a natureza humana? Como já foi dito a vida pressupõe a morte, não como um fim, mas sim como um renascimento. Para que haja vida, torna-se imprescindível matar o teatro para que ele possa viver novamente em cada artista, ressignificando a sua necessidade de existência.

Chegamos até aqui, e já não somos mais os mesmos que éramos. Estamos desconstruindo bases e estruturas que nos trouxeram até aqui já que a morte pressupõe a vida. É importante reconhecermos. Termos consciência. E por termos consciência perceber que muitas vezes o essencial ficou perdido, no desligamento de estarmos conectados com a nossa natureza humana. E ao nos desconectarmos de nossa natureza humana, esquecemos que somos parte da natureza viva/vida que é tudo que somos e habitamos.